sexta-feira, 31 de julho de 2009

BEMOL

Dirceu Cheib - Música e Tecnologia
Dirceu Cheib
Engenheiro de som e inventor
por Peron Rarez


Ele é um dos pioneiros da gravação no Brasil, e seu estúdio, Bemol, em Belo Horizonte, é o mais tradicional e antigo de Minas. Por seu estúdio e seus ouvidos já passaram todos os grandes nomes da música que vêm do Estado, nos últimos 30 anos, e até o presidente Juscelino Kubitschek. A Bemol funcionou também como uma espécie de estúdio-escola para grandes técnicos surgidos em Minas - isso bem antes de as escolas de áudio se tornarem moda.

Dirceu é um daqueles profissionais que podem ser chamados literalmente de "engenheiro de som", pois é da época em que o profissional, para lidar com áudio - principalmente em gravação - precisava conhecer, além de música, como era a eletrônica por dentro dos aparelhos. Literatura técnica, nem pensar: quando ele começou, mesmo lá fora a ciência do áudio para gravação ainda estava engatinhado. Era necessário criar as ferramentas apropriadas para levar adiante qualquer gravação que tivesse de ser feita. Ele presenciou as válvulas se tornando coisa do passado para alguns, quando surgiram os solid-state, e assistiu recentemente ao retorno delas à moda; viu o digital engatinhando no início dos anos 80, e se tornar adulto na virada do milênio.

Gravando de orquestras a grupos de samba, passando por sertanejo ou heavy metal, trilha para cinema, peças publicitárias, campanhas políticas, Dirceu ao longo dos anos acumulou uma vasta experiência nos mais variados tipos de trabalho dentro de um estúdio. Desempenhando funções, ora como engenheiro de som, ora como produtor e outras vezes como técnico de manutenção, ele acompanhou os vários estilos musicais passando por seu estúdio, também viu concorrentes surgirem e desaparecerem da noite para o dia.

Numa agradável tarde de julho, fui ao alto do bairro Serra, em Belo Horizonte, onde estão localizados os estúdios Bemol, para conversar com Dirceu sobre sua carreira, estúdios, gravação analógica e digital e otras cositas más.

Dirceu, me conte como você entrou no ramo de gravação.
Dirceu Cheibi: Na década de 60, terminando o curso de Direito, eu trabalhava com um advogado amigo, o Dr. Célio Luís Gonzaga, que conheceu em São Paulo o maestro Edmundo Peruzzi. O maestro tinha acabado de estourar o LP Violinos no Samba, pela RGE. Tratava-se de uma idéia genial: orquestra sinfônica, com uma cozinha de samba, tocando 12 sucessos da música erudita. Foi sucesso no mundo. E o Peruzzi nos convenceu a entrar para o mundo fonográfico... aí começou tudo. Criamos em BH o Selo MGL - Minas Gravações Ltda.

Como você fazia para importar os equipamentos que não havia no Brasil?
Era uma barra... Usávamos todos os artifícios possíveis. Hoje você vai à loja da esquina e escolhe entre várias marcas. A primeira console, nós montamos em BH, com os componentes importados: prés valvulados Langevin, VCs Gotham, etc.

Quem projetou o estúdio da Bemol pela primeira vez, e o atual?
O primeiro estúdio foi projetado por Sérgio Lara Campos [morto há dois anos], que era um excelente técnico de eletrônica e com experiência de gravação. Pessoa genial. O atual estúdio da Bemol foi projetado pelo arquiteto e músico dr. José Osvaldo Moreira, professor em várias faculdades. Outra pessoa genial.

Como eram feitas as gravações no estúdio quando começou?
Tínhamos uma mesa com 12 entradas e 4 buses, dois gravadores Ampex transistorizados de rolo de ¼" estéreo e excelentes microfones, incluindo quatro Telefunken ELA. Como se percebe, juntávamos toda a orquestra ou banda dentro do estúdio e tudo era gravado de uma só vez no primeiro Ampex, usando-se o segundo gravador pra juntar voz e banda. Do mesmo jeito que muitos, como Beatles e Rolling Stones também fizeram. De onde se deduz que se alguém errasse... todo mundo tinha que tocar tudo novamente.

Como foi essa historia de gravar o presidente JK?
Temos um amigo de Diamantina, Serafim Jardim, muito chegado ao JK, que adorava música, principalmente uma seresta. A gente procurava um sucesso e surgiu a idéia de um disco de seresta com a participação do ex-presidente JK. O final da história é triste; veio o AI-5 em 68 e fomos parar na Polícia Federal, e foi o fim do que seria o primeiro grande sucesso da Bemol.

Qual a sua formação inicial?
Eu me formei em Direito na Universidade Católica, mas durante os seis primeiros meses de montagem do estúdio e principalmente da mesa de gravação, iniciei minhas aulas de eletrônica básica com o Cannazaro, o engenheiro que o Lara mandou para Minas para dirigir os trabalhos.
A parte de gravação inicialmente foi apanhando no dia-a-dia e, a partir de 74, com viagens a Chicago, onde mora um cara chamado Geraldo de Oliveira, músico brasileiro radicado lá há mais de 30 anos, engenheiro de áudio e nosso amigo que sempre nos acolheu e nos encaminhava a excelentes estúdios de lá para ver como as coisas funcionavam.

Conte-me sobre o selo Palladium, que você tinha muito tempo atrás, quando artista independente nem existia?
Depois da fracassada tentativa de encarar as multinacionais e com uma grande quantidade de discos no estoque, meu irmão Afrânio Cheibi, que também trabalhava comigo no estúdio, sugeriu a idéia da venda domiciliar. Criamos coleções de seis discos, montamos várias equipes de vendas e saímos pelo Brasil afora com as coleções Palladium, vendendo de porta em porta (loja em loja).

Você se lembra de algum fato curioso que tenha ocorrido dentro do estúdio?
Bom, isso é o que não falta. Daria pra escrever um livro... Pois lá se vão 40 anos. Só como exemplo, vai um: o cliente, cantor, estava já na fase de mixagem, cuidando mais da sua voz do que de qualquer instrumento, quando um amigo que ele convidara se sente na obrigação de palpitar e pergunta em voz alta: "Essa voz não é definitiva não, né? É voz guia?". Aí você imagina o clima que rolou dentro do estúdio depois disso.

Sempre fui a fim de lhe perguntar sobre gravação analógica e digital, ainda a pergunta que não quer calar. Você acha que mudou hoje em dia?
Isso também dá um livro... Olha, nós vivemos num mundo sem volta. Muita coisa chamada de progresso, eu preferia que não existisse, mas... Quanto ao analógico e o digital, gosto de usar os dois em conjunto. E gosto do resultado da soma deles. Agora o que não podemos negar são a praticidade e as facilidades oferecidas pelo digital. Só um exemplo: o armazenamento e repetibilidade.

E aqueles valvulados que a Bemol possuía antigamente? Quando entrei no estúdio eles estavam saindo de cena. Onde foram parar?
Foram ficando na estrada. Afinal, a casa onde está o estúdio atual é a terceira, das casas que tivemos em locais diferentes, antes de adquirirmos esta aqui definitivamente. Daí, já viu, né? Temos de lembrança um compressor valvulado Altec e dois microfones ELA.

Como você conseguiu dois microfones Telefunken ELA? Um microfone cotado a peso de ouro, hoje em dia?
Confesso que sempre dei sorte na vida. Quando estávamos na fase de comprar os primeiros equipamentos, por volta de 1966, o Lara me ligou do Rio dizendo que um cidadão austríaco, Gabriel Bokor, havia se mudado para o Rio, como representante da AKG. Entre os vários microfones AKG que adquirimos, incluímos quatro Telefunken ELA, claro que sem saber a preciosidade que estávamos adquirindo.

Ouvi dizer que um dos primeiros pop filters do Brasil foi você quem fez, é verdade?
Não sei dizer, mas, diante das dificuldades de importação da época, fui obrigado a criar muita coisa, inclusive muita gambiarra...

Em que disco você mais gostou de trabalhar?
Que me perdoem todos os outros, que também me deram muito prazer, mas pelo alto grau de dificuldade, foi uma gravação externa da obra do músico e compositor Tavinho Moura, no Palácio das Artes, com a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais. Considero o resultado de nível internacional - modéstia à parte! Isso aconteceu já neste milênio e trabalhando em dupla com meu filho Ricardo Cheibi, coisa que dá muito prazer, diga-se de passagem. Tivemos de fazer um delicado processo de planejamento antes de executá-lo.

Como é seu método para gravação de bateria?
Não sei dizer se é algo especial. É o mesmo que usávamos quando você e o Marquinhos trabalhavam comigo, na década de 80. Sei que até hoje o som de batera é elogiado. Dizem que é porque o estúdio é de bateristas [Dirceu é pai de Lincoln Cheibi, um excelente baterista, que acompanha Milton Nascimento].

Pergunta clichê, mas tem algum equipamento que, caso você fosse para uma ilha, gostaria de levar?
De preferência um celular que me conectasse com o resto do mundo. O outro, uma vara de pescar, adoro isso (risos).

Como está a música nos dias atuais para você, melhorou ou está uma mesmice?
A música criada hoje? Fala sério...

Você é um dos pioneiros em estúdios particulares. Numa época em que os estúdios eram de propriedade das gravadoras, você montou o seu. Como foi isso na época e como está o mercado agora?
No começo, apenas nós mesmos utilizávamos o estúdio, até que na década de 80 surgiu o movimento chamado independente - o mais dependente de todos! As décadas de 80 e 90 foram excelentes para o estúdio. A partir da evolução tecnológica na área de gravação e com a facilidade de aquisição do equipamento e de baixar programas pela internet, a coisa mudou muito. Não fosse a boa sala de gravação, a nossa tradição e os amigos... não sei não, viu...

Com a sua experiência, como você imagina que serão os estúdios comerciais daqui para frente?
O mundo não sobrevive sem música... Então só temos de nos adaptar aos novos tempos e sermos sempre otimistas.

Você gravou muitas orquestras e corais. Como isso era e ainda é feito, seu método de trabalho?
Sempre usando o método chamado "alemão", com dois bons microfones, pois só temos um par de ouvidos. Esse é o argumento deles e eu respeito integralmente.

Você gravou muito em fita. Como fazia para conseguir fitas?
No começo era difícil, chegamos a fazer algumas importações, depois passamos a comprar no Rio e São Paulo, e agora... trate de gravar no Pro Tools.

Para quem trabalhou muito com fita, como está o som hoje? Tem trabalhado com o Pro Tools ou algum outro programa de áudio no computador?
Como sempre foi. Existe o bem captado e o mais ou menos. Hoje trabalhamos com o Pro Tools, mas não mixamos nele. Usamos o velho sistema de mixar na mesa usando periféricos de verdade.

A gente sempre pergunta aos mais experientes: você se dá bem com plug-ins, acha que realmente funcionam ou é apenas uma penteadeira colorida para encher os olhos do freguês?
Existem alguns mágicos, por exemplo: aqueles que corrigem a afinação, acho uma maravilha quando necessário.

Tem alguma coisa que não lhe foi perguntado e que você gostaria de falar?
Que considero esta revista muito importante para os novos profissionais, principalmente. Parabéns e vida longa.

Quais são seus planos daqui para frente?
Continuar com saúde pra poder trabalhar por muito tempo, no que mais gosto.

Dê algum toque para aqueles que estão começando neste ramo.
Que estudem muito. A profissão vai exigir, daqui pra frente, muito mais conhecimento e informação e ela está disponível em toda parte, basta querer.